7 de ago. de 2009

ACASO E MÉTODO



(Sobre a Regra IV Para a Direção do Espírito, de Descartes)


Só domino a linguagem dos outros.
A minha faz de mim o que quer.
Karl Kraus


1

A IV Regra começa com o enunciado: “o método é necessário na investigação da verdade”. O que se segue então é a “demonstração” do enunciado proposto.
Mas se o objetivo da IV Regra é expor o que constitui a mathesis universalis, raiz (arché) do método, a palavra “método” presente ao enunciado não o nomeia como aquele método plenamente desenvolvido das regras sobre a intuição e a dedução. Ao invés, refere-se a um método ainda embrionário (do ponto de vista do Discours), mas contido desde sempre, em suas determinações essenciais, na mathesis universalis.

2

De acordo com a compreensão de Descartes, qualquer verdade conhecida supõe ela mesma o método, necessariamente implícito em tudo o que é verdadeiro. De tal modo que a palavra conota aqui tudo que lhe é estranho e mesmo oposto na representação usual e a tais notas poder-se-ia ainda acrescentar a divisa provocadora de Feyerabend: contra o método.
Pois aquém e além do ofício da intervenção instrumental (ou de qualquer positividade), a palavra sugere aqui disponibilidade ao “caminho natural da Razão”; passividade além das determinações do intelecto; atualidade da verdade e virtus universalis.

3

Em sua busca “cega” do conhecimento, os “mortais” não atentam para as “luzes naturais”, lançando-se às trevas em que só “por acaso” se defrontam com a verdade.
Segundo Cartesius, comportamo-nos assim como um homem “que ardesse num desejo tão louco de descobrir um tesouro que percorresse sem parar todos os caminhos, procurando se por acaso algum viajante não teria perdido alguma coisa”.
No entanto, mesmo quando os “mortais” encontram a verdade “por acaso”, ainda assim encontram-na graças ao método. O acaso, aqui, sendo o encontro da verdade, é o encontro do método: o “por acaso” descreve tal encontro fortuito.
Neste caso, os mortais, lançados às trevas, deixam-se com razão arrastar pela luz.

4

A curiosidade “cega”, que obsta à luz “natural”, não se afirma apenas ou essencialmente como ignorância de um método qualquer, mas encarna-se igualmente nas imposições da lógica escolástica, para a qual o conhecimento é uma atividade classificatória que tem no silogismo seu instrumento principal. Estas são as sombras do método.
No sistema da Escola, o silogismo corresponde àquele ideal de classificação perante o qual jaz vitimado o espírito por uma série de regras que deve aprender e memorizar para caminhar do geral ao particular. Mais tarde, ao tempo do Discours, Descartes irá nos contar como precisou viajar em busca das luzes do norte - uma viagem filosófica, por todos os títulos – para poder desaprender tudo que aprendera até então.
Tanto a atitude não-metódica quanto a dialética medieval só contribuem para turvar o espírito, que de tanto caminhar nas trevas acaba desabituando-se da luz, e, por outro lado, “não se pode acrescentar nada à pura luz da razão que não a obscureça de algum modo”.

5

Da Razão extrai-se o método. Coincidir com a Razão é, pois, estar de posse, ou melhor, estar em posse do método. De tal forma que as regras que o espírito deve observar não lhes são estranhas, não lhes são impostas desde fora. Ao contrário, são os caminhos naturais do conhecimento, o que de mais caro possui o espírito na atividade de conhecer.
Pois se toda verdade supõe o método, “o espírito humano possui, com efeito, alguma coisa de divino em que as primeiras sementes do pensamento útil foram colocadas de modo que, muitas vezes, por mais negligenciadas e asfixiadas que sejam por estudos contrários, produzem espontaneamente frutos”. Tal “espontaneidade” é o nome do “método”.

6

Surpreendentemente (ou não) para um filósofo “racionalista”, a espontaneidade é que responde aqui pelo desenvolvimento das ciências, entre elas as ciências matemáticas, que privilegiadas pela simplicidade de seus objetivos favorecem ao espírito seguir seu curso natural no conhecimento.
É que o entendimento nunca é espontâneo; a razão sim. Tal espontaneidade é expressão da utilização irrefletida dos princípios inatos da ordem e da medida.
Assim, Descartes descobre, sob as matemáticas ordinárias, os princípios que constituem a matemática universal, regra de ouro e fonte de todo o conhecimento verdadeiro.
A ordem é a ordenação de uma totalidade – disposição de seus elementos – e a medida é a relação que permite atribuir um valor (conhecê-lo, efetivamente) ao elemento que, nesta totalidade, é desconhecido. De tal forma que, aqui, o método ou “curiosidade vidente” consiste em identificar o que desejamos conhecer para à seguir procurar sua determinação (medida) na trama de relações (ordem) em que ela se dá.
O modelo de tal operação é o da incógnita da equação matemática que, tomada em suas relações com os outros elementos, tem em sua determinação o problema meramente técnico de seu isolamento – uma questão de habilidade na demonstração.

8

No Oriente, a matemática está na sua pátria.
Na Europa, degenerou em simples técnica.
Novalis

A matemática universal é a fonte de todo o conhecimento, fundamento e origem do método. À sua reflexão e auto-contemplação devemos pois nos tornar disponíveis. Nela, por ela, o método encontra o seu lugar na Razão, muito além das sombras e dos estratagemas do entendimento.
Colhida sob o envólucro das matemáticas ordinárias para mostrar o caminho necessário ao conhecimento, em seus princípios o espírito descobre a possibilidade de, alcançando-se por cima dos particulares, iluminar com sua “luz natural” à totalidade dos objetos.

Alex Varella