4 de nov. de 2009
16 de ago. de 2009
Alex Varella: poemas áudio-visuais
POEMA DO VISÍVEL
Uns vâo a Roma ver o papa
outros ficam cegos de uma vez.
Mas o superficial profundo dispensa toda referência a outros mundos.
Eu sou aqui
cantor do visível,
donde o sol baniu as almas e seu teatro de sombras e trucagens,
com que unicamente se comprazem.
- Até o poente do visível!
MAR
Mar é o além que há.
Além do mar não há.
O mar canta no modo das coisas varanda,
o além habita seu estar.
Mar é o além que há.
E o mais do mais não há.
NEGRA GREGA
Negra negra
Grega grega
de palavras & mercancias
no Porto das Palavras
de Alexandria
beleza é o ser visível
ser é visível
negra grega
da África Clássica
próprio da beleza é o aparecer
BARCELONAS
Barcelona é uma arte
Ora mar Ora cidade
Perdi meu último heterônimo em Barcelona
(Alex Pessoa)
Onde tudo tem dois nomes,
mundo heteronômico!
Barcelona é uma arte
Ora mar
Ora cidade.
O PINTOR DA PALETA DO MAR
Pintor da paleta do mar,
sem pincel e tinta,
entre o rosa-róseo e o laranja
toda cor é de comer
é de meu prazer
é de meu querer
é de meu pomar
do pintor da paleta do mar
o pintor da paleta do mar
DIA DA INAUGURAÇÃO DO MUNDO
O olhar faz o olho
O olho faz o mundo.
Hoje é dia da inauguração do mundo.
Nunca houve um tempo pré-existente ao olhar
O olhar é o inaugural dos mundos
15 de ago. de 2009
14 de ago. de 2009
13 de ago. de 2009
O tema da participação no planejamento urbano
Se a Teoria da Cidade se propõe o “exame crítico da atividade dos urbanistas”[1], tal esclarecimento incide cada vez mais sobre o binômio planejamento urbano-participação popular.
O relacionamento entre os dois termos pode ser acompanhado tanto do ponto de vista das disciplinas da planificação quanto do contexto político e filosófico que os reúne e compreende.
Os anos 60, nos Estados Unidos e na Europa, constituem o marco temporal inicial de seu encontro, aproximação e desenvolvimento histórico-problemático.
No que se refere às disciplinas da planificação, a temática da participação revela-se como manifestação e produto de uma crise do modelo técnico autoritário, fundado na presunção de desinteresse, objetividade e universalidade da ciência, da qual o urbanismo racionalista moderno e seu “estilo internacional” se representa como fiel aplicação. Trata-se de uma crise no modo de auto-compreensão e de atuar das disciplinas “técnicas” (e, em última análise, da própria modernidade), da qual emergirá o discurso da participação[2].
Aqui são os próprios urbanistas e arquitetos que passam a admitir e defender a presença do público na definição dos meios e fins do planejamento urbano, o modelo hermenêutico da aplicatio que, em oposição à aplicação universal-autoritária, envolve o reconhecimento dos atores, circunstâncias e contextos que demandam alterações, adaptações ou, quem sabe, até mesmo o arquivamento dos planos da cidade dos urbanistas, elaborados na presunção de ignorância e incapacidade do público, cliente ou usuário, de definir, ou pelo menos de “participar” da tomada de decisão sobre aquilo que incide diretamente sobre sua vida presente e futura.
A disposição e radicalismo em aceitar e praticar o novo discurso da participação, candidato a paradigma na esfera técnica, em particular no planejamento urbano, pode ser medido numa escala cujo fruto mais extremo é o advocacy planning, o “planejamento advocatício”[3].
Antigos demiurgos convertidos à modesta condição de intérpretes, abrindo mão de seu direito de plasmar ao plano sozinhos, com atenção apenas à seus pares e, naturalmente, aos investidores e políticos, propõem-se agora, generosamente, a transferir sua linguagem, métodos, processos e meios de composição, como se seus advogados fossem, aos grupos “diretamente interessados” e excluídos (na lógica prevalecente, excluídos porque interessados), aos quais se concede o direito a definir meios e fins.
Já se passara o período heróico do modernismo arquitetônico, quando Walter Gropius, o fundador e diretor da Bauhaus, afirmara sem papas na língua a soberania do arquiteto diante dos tímidos gostos e preferências do usuário e do cliente quanto ao edifício e a cidade[4].
O cliente tende a fazer escolhas irracionais, dizia Gropius, secundado por Le Corbusier e toda a primeira geração do movimento moderno, e tais preferências não só contrariam o telos do desenvolvimento histórico e social como, “no fundo”, seus próprios interesses particulares, que só poderiam se desenvolver verdadeiramente em relações de sintonia, subsunção e harmonia com o todo social, concebido alternativamente como organismo ou máquina.
Mais tarde, exilado nos Estados Unidos, Gropius seria um personagem de ponta na propagação do dogma do modernismo arquitetônico, podendo-se atribuir parte da reação “participativa” dos círculos construtivos (arquitetos e urbanistas) norte-americanos a um efeito perverso de sua agressiva pregação da soberania dos técnicos, quando na cultura americana de mercado, “o cliente tem sempre razão”.
Longe daqueles tempos heróicos, já estávamos agora, nos anos 60, à época da terceira geração do movimento moderno, quando Aldo Van Eick, por exemplo, nos revela a “estranha” perenidade da forma da aldeia Dogon, que permanece a mesma, indiferente às aflições historicistas e à invocação ao progresso universal, tão ao gosto da vanguarda arquitetônica moderna[5].
Admite-se então, tendo em vista o caráter cultural e relativo da “ciência” da arquitetura e da cidade, um compromisso entre o saber dos técnicos e as expectativas, necessidades e preferências dos destinatários de seu trabalho.
A partir dos anos 70, a temática da participação popular e do planejamento participativo ganha espaço também na América do Sul, via Europa e Estados Unidos, de que é testemunho o prestígio e presença acadêmica constante, e em círculos técnicos, do sociólogo espanhol Manuel Castells[6] e, no Brasil, do antropólogo-urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos, interlocutor constante das nascentes associações de moradores em suas demandas de participação[7].
Do ponto de vista externo à esfera técnica, isto é, do contexto político e filosófico que instrui e, por assim dizer, prepara, nos Estados Unidos, a aproximação a que estamos nos referindo, entre o planejamento urbano e o programa da participação popular, devemos apontar à conexão entre as posições da new left (nova esquerda) e a tradição cultural do liberalismo e do pragmatismo americano. Este último não desqualifica o interesse, mas, pelo contrário, concede-lhe cidadania e o constitui como fonte, expressão e definição da verdade[8] e, em tal contexto, a cultura liberal do indivíduo consumidor tende a representar a “participação” como um direito de mercado, que afeta a clientes e usuários como “consumidores”.
Embora não seja exato dizer que o pragmatismo está para a cultura americana como o positivismo para a brasileira, são poucos os exemplos de tal inserção cultural de uma filosofia, em que pese o caráter oficial ou oficioso, estatal e institucional do positivismo no Brasil, enquanto o pragmatismo americano, antes de ser de James, Dewey ou Rorty, é americano. Tem origem na sociedade e não no Estado.
Enquanto isso, o positivismo de Comte, a partir do qual se constitui o positivismo à brasileira, trilha caminho inverso ao da soberania popular – atualizada pelos “usuários”, “interessados” ou simplesmente “cidadãos” - e representa uma tradição fortemente anti-participativa, se assim podemos dizer, expressa na exigência de uma cientifização da política, parte dos “planos necessários à reforma da sociedade” e que, justamente, deve reforçar e concentrar as decisões nas mãos dos técnicos[9].
Tal direção se fortalece nos períodos de ditadura, no tempo de Vargas, que teria sido ele próprio um fiel da “doutrina” e, posteriormente, da ditadura inaugurada em 64, quando os políticos profissionais e ligados ao quadro partidário são alijados do comando da máquina estatal e das políticas públicas, em benefício de uma aliança militar-tecnocrática.
Desta forma, é num contexto cultural e filosófico muito distinto daquele do pragmatismo e do liberalismo norte-americanos, que se enuncia pela primeira vez entre nós, nos anos 70, o discurso da participação popular na esfera técnico-urbana.
Alex Varella
O relacionamento entre os dois termos pode ser acompanhado tanto do ponto de vista das disciplinas da planificação quanto do contexto político e filosófico que os reúne e compreende.
Os anos 60, nos Estados Unidos e na Europa, constituem o marco temporal inicial de seu encontro, aproximação e desenvolvimento histórico-problemático.
No que se refere às disciplinas da planificação, a temática da participação revela-se como manifestação e produto de uma crise do modelo técnico autoritário, fundado na presunção de desinteresse, objetividade e universalidade da ciência, da qual o urbanismo racionalista moderno e seu “estilo internacional” se representa como fiel aplicação. Trata-se de uma crise no modo de auto-compreensão e de atuar das disciplinas “técnicas” (e, em última análise, da própria modernidade), da qual emergirá o discurso da participação[2].
Aqui são os próprios urbanistas e arquitetos que passam a admitir e defender a presença do público na definição dos meios e fins do planejamento urbano, o modelo hermenêutico da aplicatio que, em oposição à aplicação universal-autoritária, envolve o reconhecimento dos atores, circunstâncias e contextos que demandam alterações, adaptações ou, quem sabe, até mesmo o arquivamento dos planos da cidade dos urbanistas, elaborados na presunção de ignorância e incapacidade do público, cliente ou usuário, de definir, ou pelo menos de “participar” da tomada de decisão sobre aquilo que incide diretamente sobre sua vida presente e futura.
A disposição e radicalismo em aceitar e praticar o novo discurso da participação, candidato a paradigma na esfera técnica, em particular no planejamento urbano, pode ser medido numa escala cujo fruto mais extremo é o advocacy planning, o “planejamento advocatício”[3].
Antigos demiurgos convertidos à modesta condição de intérpretes, abrindo mão de seu direito de plasmar ao plano sozinhos, com atenção apenas à seus pares e, naturalmente, aos investidores e políticos, propõem-se agora, generosamente, a transferir sua linguagem, métodos, processos e meios de composição, como se seus advogados fossem, aos grupos “diretamente interessados” e excluídos (na lógica prevalecente, excluídos porque interessados), aos quais se concede o direito a definir meios e fins.
Já se passara o período heróico do modernismo arquitetônico, quando Walter Gropius, o fundador e diretor da Bauhaus, afirmara sem papas na língua a soberania do arquiteto diante dos tímidos gostos e preferências do usuário e do cliente quanto ao edifício e a cidade[4].
O cliente tende a fazer escolhas irracionais, dizia Gropius, secundado por Le Corbusier e toda a primeira geração do movimento moderno, e tais preferências não só contrariam o telos do desenvolvimento histórico e social como, “no fundo”, seus próprios interesses particulares, que só poderiam se desenvolver verdadeiramente em relações de sintonia, subsunção e harmonia com o todo social, concebido alternativamente como organismo ou máquina.
Mais tarde, exilado nos Estados Unidos, Gropius seria um personagem de ponta na propagação do dogma do modernismo arquitetônico, podendo-se atribuir parte da reação “participativa” dos círculos construtivos (arquitetos e urbanistas) norte-americanos a um efeito perverso de sua agressiva pregação da soberania dos técnicos, quando na cultura americana de mercado, “o cliente tem sempre razão”.
Longe daqueles tempos heróicos, já estávamos agora, nos anos 60, à época da terceira geração do movimento moderno, quando Aldo Van Eick, por exemplo, nos revela a “estranha” perenidade da forma da aldeia Dogon, que permanece a mesma, indiferente às aflições historicistas e à invocação ao progresso universal, tão ao gosto da vanguarda arquitetônica moderna[5].
Admite-se então, tendo em vista o caráter cultural e relativo da “ciência” da arquitetura e da cidade, um compromisso entre o saber dos técnicos e as expectativas, necessidades e preferências dos destinatários de seu trabalho.
A partir dos anos 70, a temática da participação popular e do planejamento participativo ganha espaço também na América do Sul, via Europa e Estados Unidos, de que é testemunho o prestígio e presença acadêmica constante, e em círculos técnicos, do sociólogo espanhol Manuel Castells[6] e, no Brasil, do antropólogo-urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos, interlocutor constante das nascentes associações de moradores em suas demandas de participação[7].
Do ponto de vista externo à esfera técnica, isto é, do contexto político e filosófico que instrui e, por assim dizer, prepara, nos Estados Unidos, a aproximação a que estamos nos referindo, entre o planejamento urbano e o programa da participação popular, devemos apontar à conexão entre as posições da new left (nova esquerda) e a tradição cultural do liberalismo e do pragmatismo americano. Este último não desqualifica o interesse, mas, pelo contrário, concede-lhe cidadania e o constitui como fonte, expressão e definição da verdade[8] e, em tal contexto, a cultura liberal do indivíduo consumidor tende a representar a “participação” como um direito de mercado, que afeta a clientes e usuários como “consumidores”.
Embora não seja exato dizer que o pragmatismo está para a cultura americana como o positivismo para a brasileira, são poucos os exemplos de tal inserção cultural de uma filosofia, em que pese o caráter oficial ou oficioso, estatal e institucional do positivismo no Brasil, enquanto o pragmatismo americano, antes de ser de James, Dewey ou Rorty, é americano. Tem origem na sociedade e não no Estado.
Enquanto isso, o positivismo de Comte, a partir do qual se constitui o positivismo à brasileira, trilha caminho inverso ao da soberania popular – atualizada pelos “usuários”, “interessados” ou simplesmente “cidadãos” - e representa uma tradição fortemente anti-participativa, se assim podemos dizer, expressa na exigência de uma cientifização da política, parte dos “planos necessários à reforma da sociedade” e que, justamente, deve reforçar e concentrar as decisões nas mãos dos técnicos[9].
Tal direção se fortalece nos períodos de ditadura, no tempo de Vargas, que teria sido ele próprio um fiel da “doutrina” e, posteriormente, da ditadura inaugurada em 64, quando os políticos profissionais e ligados ao quadro partidário são alijados do comando da máquina estatal e das políticas públicas, em benefício de uma aliança militar-tecnocrática.
Desta forma, é num contexto cultural e filosófico muito distinto daquele do pragmatismo e do liberalismo norte-americanos, que se enuncia pela primeira vez entre nós, nos anos 70, o discurso da participação popular na esfera técnico-urbana.
Alex Varella
[1] LEFEBVRE, Henri. “O Direito À Cidade”. São Paulo: Editora Moraes, 1991.
[2] HALL, Peter. “Cidades do Amanhã”. São Paulo: Perspectiva, 1995, “A busca de um novo paradigma”, págs. 392- 402.
[3] DAVIDOFF, P. “Advocacy and pluralism in planning”. Journal of the American Institute of Planning, no 31, págs 186-197, 1965.
[4] GROPIUS, Walter, in: Choay, Françoise. “O Urbanismo”. São Paulo: Perspectiva, 2005. Também: Wolfe, Tom. “Da Baunhaus ao nosso Caos”. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.
[5] EICK, Aldo Van; CHOAY, Françoise; BAIRD, George; BANHAM, Reyner; RYKWERT, Joseph; FRAMPTON, Kenneth; SILVER, Nathan. “Le sens de la Ville”. Paris: Éditions du Seuil, 1972.
[6] CASTELLS, Manuel. “Crisis Urbana, Estado y Participación popular”. Cochabamba: Colegio de Arquitectos de Cochabamba, 1988.
[7] FREIRE, Américo e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca”. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002.
[8] RORTY, Richard. “A Trajetória do Pragmatista”, in: ECO, Umberto. “Interpretação e Superinterpretação”. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[9] COMTE, Auguste. “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”, in: “Opúsculos de Filosofia Social”. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Globo/Ed. Universidade de São Paulo, 1972.
12 de ago. de 2009
A questão da participação: fragmento, parte e todo
A palavra participação está implicada na relação binária que categorias de arte e todo podem assumir. As partes, só são “parte” quando participam de um “todo”.Essa relação semântica não implica na restrição das práticas realizadas e denominadas pela palavra “participação”. O que está em jogo nesta discussão são as diferenças e as atualizações de dois tipos de participação: aquela que podemos chamar de participativa, isso é, que subentende partes subordinadas a uma totalidade; e a participação fragmentária, que implica em ruptura com a totalidade.A “participação participativa” é o modelo que tradicionalmente informa as produções de arquitetos e urbanistas. Segundo Edson Mahfuz, toda obra de arquitetura deve possuir um conceito central ao qual todos os outros elementos permanecem subordinados[1]; esse “conceito” é o que orienta a obra e que permite que ela seja tomada como um todo organizado, como algo coerente. Como se formula esse conceito? Através da concepção de uma imagem conceitual do projeto, antes que ele seja executado. Ou seja, a totalidade dos projetos e planos de arquitetos e urbanistas deve ser uma “qualidade” inerente e a priori.A citação de Oswald Ungers, destacada por Mahfuz, afirma que o objeto arquitetônico deve ser mais que um agregado de partes, isso porque não é da junção aleatória das partes que se constitui a totalidade da obra, mas sim da junção das partes e sua ordenação, que deve levar em conta a totalidade pré-existente. Por isso mesmo, podem ser entendidas como parte, pois participam de um todo.O par parte-todo é indissociável, um implica o outro, tanto o todo é que confere significado à parte[2], quanto a parte é a unidade básica de produção do todo. Dessa relação mútua decorre a observação de que cada parte pode ser compreendida como uma micrototalidade, pois a parte é um elemento pronto, predefinido e acabado – como no exemplo do “catálogo de partes prontas” de Louis Durand, apresentado por Mahfuz[3] – podendo ela mesma ser dividida em partes, que por sua vez podem ser tomadas como totalidades e assim divididas...Essa predominância do todo sobre as partes parece se repetir nas elaborações de Aldo Rossi, em “A arquitetura da cidade”, chegando a afirmar ipsis literis que o todo é mais importante que as partes[4], porém o exame desta “arquitetura total” deve ser realizado por partes. Também citando Luis Durand, Rossi afirma que cada elemento arquitetônico deve ser considerado como parte componente do todo que é a cidade, mas que, ainda assim, em outro contexto, eles podem ser entendidos como totalidades.Uma sucessão de divisões infinita, enquanto não implicar na perda de sentido, ou na fragmentação. Desta forma, a janela é parte do apartamento, que é parte do edifício, que é parte da cidade... O “perigo” da fragmentação seria destituir a totalidade de sua característica definidora, pois é um processo que implica em ruptura e descontinuidade. O fragmento é associado por Paola Berenstein[5] ao estado labiríntico, pois ele é o elemento tanto da apreensão, quanto da construção das relações espaciais orientadas (ou desorientadas) pela experiência e pelo percurso. É a forma de compreensão dos espaços que não parte de uma totalidade anterior, mas que muda constantemente.A população – alvo das políticas participativas – vive os espaços da cidade, experimenta e significa cotidianamente suas casas, ruas e percursos, de formas múltiplas e variadas, o que se atribui à caracterização fragmentária da forma como se concebe o espaço citadino.As políticas participativas de planejamento urbano parecem pressupor a “libertação” dessas concepções fragmentárias, através da aquisição do sentido total, da significação da cidade. Assim as pessoas poderão efetivamente participar, como representantes das partes que a compõem.Essa libertação do fragmento pode consistir no compartilhamento da perspectiva totalizante dos arquitetos e urbanistas, evidenciada no fato de que usualmente a primeira fase dos processos de elaboração de Planos Diretores Participativos consiste na apresentação para a população de plantas e fotos aéreas das áreas onde moram as pessoas, para que primeiro adquiram uma visão “total” e só então manifestem suas demandas.
A proposta da arte participativa difere absolutamente. Ela parte do questionamento acerca do papel dos artistas, como autores únicos e dotados de habilidades excepcionais. E das próprias obras de arte, como algo cuja existência é independente da experiência e da apreciação pelo público, pois este também deixa de ser relegado à função de mero espectador/receptor e passa a ser também autor. Pois os artistas contemporâneos, como Helio Oiticica, propunham obras inacabadas, que mudavam a partir da experimentação do público.A experiência individual e as motivações subjetivas, tão caras às propostas da arte participativa, são elementos próprios do que Paola Berenstein vai chamar de “estado labiríntico”. Vimos, através dos labirintos de Hélio Oiticica, que a experiência espacial pessoal e coletiva é primordial para construir um labirinto e que é impossível ter-se qualquer previsão (projeto) dessa experiência sensorial e subjetiva. (pp.97)A perspectiva que desfaz a fragmentação do labirinto é a do alto, quando se tem a visão total, ao invés do fragmento; o perigo de se perder é abolido e o labirinto, agora ordenado, torna-se pirâmide.Assim, é a organização piramidal que os técnicos do planejamento parecem querer compartilhar (e ensinar) para os moradores e usuários da cidade, despojando-os da percepção labiríntica. E não apenas eles: para Macpherson[6], a pirâmide é a figura que representa o ideal de democracia participativa, com chances de operar diante dos obstáculos presentes nas sociedades ocidentais, descritos pelo autor. Também Foucault associa o modelo da pirâmide ao aumento da escala do mecanismo panóptico, que em certa altura deixa de ser um privilégio das instituições disciplinares fechadas, onde era associado à forma circular, para virar um mecanismo que atravessa diversas instâncias da sociedade[7]. Enquanto que para as artes participativas e para a fruição do estado labiríntico os comportamentos contraditórios e ambíguos, que os indivíduos usualmente apresentam ao realizar suas escolhas, são potencializadores da criatividade e da experiência de participação, na imagem utópica de democracia participativa, apresentada por Macpherson, eles são obstáculos.O fato da população ser diretamente interessada nos assuntos e decisões tomadas pelos planejadores é entendido como um problema para a tomada de decisões, pois cada um seria um partidário de suas causas individuais e não estaria disposto a sacrificar seus interesses em prol do bem coletivo. Daí se presume a necessidade de um ponto de vista desinteressado, que por isso mesmo seria capaz de tomar decisões visando o “interesse geral”. Esse ponto de vista seria o dos técnicos, arquitetos e planejadores, dotados de um conhecimento representado como axiologicamente neutro, imparcial e objetivo[8]. Essa representação estaria associada, segundo Varella, à herança do positivismo à brasileira, que afirma a soberania universal do conhecimento técnico-científico frente a qualquer atuação particularista da população.Neste sentido, a possibilidade de uma “participação fragmentária” é algo profundamente deslegitimado nas políticas participativas no Brasil. Por outro lado, a tradição não-participativa faz com que as propostas de participação, apesar de reguladas por lei federal, pareçam acessórios do discurso de aprovação dos planos e projetos urbanos...
[1] MAHFUZ, Edson da C. Ensaio sobre a razão compositiva. Viçosa, UFV / Imprensa Universitária; Belo Horizonte, AP Cultural, 1995. p.23.[2] Ibid. p.38.[3] Ibid. p.43.[4] ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. Martins fontes; São Paulo, 2001. p.24[5] Berenstein, Paola. A estética da Ginga.[6] MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Rio de Janeiro. Zahar, 1978. pp. 97-118.[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Ed. Vozes, Petrópolis. 2005. pp. 143-182.[8] VARELLA, Alex. O Dever De Cidadania: Políticas Públicas De Planejamento Urbano E Participação Popular No Brasil. 2007. p.9.
11 de ago. de 2009
10 de ago. de 2009
9 de ago. de 2009
Arte e Cidade - Anônimos
Rua Silveira Martins, Rio de Janeiro, 2008.
Rua do Catete, Rio de Janeiro, 2008.
Rua Bento Lisboa, Rio de Janeiro, 2008.
8 de ago. de 2009
7 de ago. de 2009
ACASO E MÉTODO
Só domino a linguagem dos outros.
A minha faz de mim o que quer.
Karl Kraus
1
A IV Regra começa com o enunciado: “o método é necessário na investigação da verdade”. O que se segue então é a “demonstração” do enunciado proposto.
Mas se o objetivo da IV Regra é expor o que constitui a mathesis universalis, raiz (arché) do método, a palavra “método” presente ao enunciado não o nomeia como aquele método plenamente desenvolvido das regras sobre a intuição e a dedução. Ao invés, refere-se a um método ainda embrionário (do ponto de vista do Discours), mas contido desde sempre, em suas determinações essenciais, na mathesis universalis.
2
De acordo com a compreensão de Descartes, qualquer verdade conhecida supõe ela mesma o método, necessariamente implícito em tudo o que é verdadeiro. De tal modo que a palavra conota aqui tudo que lhe é estranho e mesmo oposto na representação usual e a tais notas poder-se-ia ainda acrescentar a divisa provocadora de Feyerabend: contra o método.
Pois aquém e além do ofício da intervenção instrumental (ou de qualquer positividade), a palavra sugere aqui disponibilidade ao “caminho natural da Razão”; passividade além das determinações do intelecto; atualidade da verdade e virtus universalis.
3
Em sua busca “cega” do conhecimento, os “mortais” não atentam para as “luzes naturais”, lançando-se às trevas em que só “por acaso” se defrontam com a verdade.
Segundo Cartesius, comportamo-nos assim como um homem “que ardesse num desejo tão louco de descobrir um tesouro que percorresse sem parar todos os caminhos, procurando se por acaso algum viajante não teria perdido alguma coisa”.
No entanto, mesmo quando os “mortais” encontram a verdade “por acaso”, ainda assim encontram-na graças ao método. O acaso, aqui, sendo o encontro da verdade, é o encontro do método: o “por acaso” descreve tal encontro fortuito.
Neste caso, os mortais, lançados às trevas, deixam-se com razão arrastar pela luz.
4
A curiosidade “cega”, que obsta à luz “natural”, não se afirma apenas ou essencialmente como ignorância de um método qualquer, mas encarna-se igualmente nas imposições da lógica escolástica, para a qual o conhecimento é uma atividade classificatória que tem no silogismo seu instrumento principal. Estas são as sombras do método.
No sistema da Escola, o silogismo corresponde àquele ideal de classificação perante o qual jaz vitimado o espírito por uma série de regras que deve aprender e memorizar para caminhar do geral ao particular. Mais tarde, ao tempo do Discours, Descartes irá nos contar como precisou viajar em busca das luzes do norte - uma viagem filosófica, por todos os títulos – para poder desaprender tudo que aprendera até então.
Tanto a atitude não-metódica quanto a dialética medieval só contribuem para turvar o espírito, que de tanto caminhar nas trevas acaba desabituando-se da luz, e, por outro lado, “não se pode acrescentar nada à pura luz da razão que não a obscureça de algum modo”.
5
Da Razão extrai-se o método. Coincidir com a Razão é, pois, estar de posse, ou melhor, estar em posse do método. De tal forma que as regras que o espírito deve observar não lhes são estranhas, não lhes são impostas desde fora. Ao contrário, são os caminhos naturais do conhecimento, o que de mais caro possui o espírito na atividade de conhecer.
Pois se toda verdade supõe o método, “o espírito humano possui, com efeito, alguma coisa de divino em que as primeiras sementes do pensamento útil foram colocadas de modo que, muitas vezes, por mais negligenciadas e asfixiadas que sejam por estudos contrários, produzem espontaneamente frutos”. Tal “espontaneidade” é o nome do “método”.
6
Surpreendentemente (ou não) para um filósofo “racionalista”, a espontaneidade é que responde aqui pelo desenvolvimento das ciências, entre elas as ciências matemáticas, que privilegiadas pela simplicidade de seus objetivos favorecem ao espírito seguir seu curso natural no conhecimento.
É que o entendimento nunca é espontâneo; a razão sim. Tal espontaneidade é expressão da utilização irrefletida dos princípios inatos da ordem e da medida.
Assim, Descartes descobre, sob as matemáticas ordinárias, os princípios que constituem a matemática universal, regra de ouro e fonte de todo o conhecimento verdadeiro.
A ordem é a ordenação de uma totalidade – disposição de seus elementos – e a medida é a relação que permite atribuir um valor (conhecê-lo, efetivamente) ao elemento que, nesta totalidade, é desconhecido. De tal forma que, aqui, o método ou “curiosidade vidente” consiste em identificar o que desejamos conhecer para à seguir procurar sua determinação (medida) na trama de relações (ordem) em que ela se dá.
O modelo de tal operação é o da incógnita da equação matemática que, tomada em suas relações com os outros elementos, tem em sua determinação o problema meramente técnico de seu isolamento – uma questão de habilidade na demonstração.
8
No Oriente, a matemática está na sua pátria.
Na Europa, degenerou em simples técnica.
Novalis
A matemática universal é a fonte de todo o conhecimento, fundamento e origem do método. À sua reflexão e auto-contemplação devemos pois nos tornar disponíveis. Nela, por ela, o método encontra o seu lugar na Razão, muito além das sombras e dos estratagemas do entendimento.
Colhida sob o envólucro das matemáticas ordinárias para mostrar o caminho necessário ao conhecimento, em seus princípios o espírito descobre a possibilidade de, alcançando-se por cima dos particulares, iluminar com sua “luz natural” à totalidade dos objetos.
Alex Varella
6 de ago. de 2009
5 de ago. de 2009
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